fevereiro 27, 2008

Caderneta vermelha

O carteiro entregou o telegrama.
José Roberto não agradeceu e enquanto abria o envelope, uma profunda ruga sulcou-lhe a testa.
Uma expressão mais de surpresa do que de dor tomou-lhe conta do rosto.
Palavras breves e incisivas:
- Teu pai faleceu. Enterro 18h. Mãe
José Roberto continuou parado, olhando para o vazio.
Nenhuma lágrima lhe veio aos olhos, nenhum aperto no coração.
Nada!
Era como se tivesse morrido um estranho.
Por que nada sentia pela morte do velho?
Com um turbilhão de pensamentos confundindo-o, avisou a esposa, apanhou o autocarro epartiu, vencendo os silenciosos quilómetros de estrada enquanto a cabeça girava a mil.
No íntimo, não queria ir ao funeral e, se ia era apenas para que a mãe não ficasse mais amargurada.
Ela sabia que pai e filho não se davam bem.
A coisa tinha chegado ao final no dia em que, depois de mais uma chuva
de acusações, José Roberto fez as malas e partiu prometendo nunca mais colocar os pés naquela casa.
Um emprego razoável, casamento, telefonemas à mãe pelo Natal, Ano Novo ou Páscoa...
Ele tinha-se desligado da família, não pensava no pai e a última coisa que desejava na vida era ser parecido com ele.
O velório: poucas pessoas.
A mãe está lá, pálida, gelada, chorosa.
Quando reviu o filho, as lágrimas correram silenciosas, foi um abraço de desesperado silêncio.
Depois, ele viu o corpo sereno envolto num lençol de rosas vermelho, como as que o pai gostava de cultivar.
José Roberto não verteu uma única lágrima, o coração não pedia.
Era como estar diante de um desconhecido, um estranho, um...
O funeral: o pássaro cantando, o sol pondo-se.
Ele ficou em casa com a mãe até à noite, beijou-a e prometeu-lhe que voltaria com os netos e a esposa para se conhecerem.
Agora, ele poderia voltar à casa, porque aquele que não o amava, já não estava lá para lhe dar conselhos ácidos nem para o criticar.
No momento da despedida a mãe colocou-lhe algo pequeno e rectangular na mão.
“Há mais tempo que poderias ter recebido isto” - disse. “Mas, infelizmente só o encontrei, depois dele partir, entre as recordações mais importantes...”
Foi com um gesto mecânico que, minutos depois de começar a viagem, meteu a mão no bolso e sentiu o presente.
O foco mortiço da luz do bagageiro revelou uma pequena caderneta de capa vermelha.
Abriu-a curioso.
Páginas amareladas.
Na primeira, no alto, reconheceu a caligrafia firme do pai:
"Nasceu hoje o José Roberto.
Quase quatro quilos! O meu primeiro filho, um rapagão!
Estou orgulhoso por ser o pai daquele que será a minha continuação na Terra!".
À medida que folheava, devorando cada anotação, sentia um aperto na boca do estômago, mistura de dor e perplexidade, pois as imagens do passado ressurgiram firmes e atrevidas como se acabassem de acontecer!
"Hoje, meu filho foi para escola.
Está um homenzinho! Quando o vi de uniforme, fiquei emocionado e desejei-lhe um futuro cheio de sabedoria.
A vida dele será diferente da minha, porque não pude estudar por ter sido obrigado a ajudar meu pai.
Mas para o meu filho desejo o melhor.
Não permitirei que a vida o castigue".
Outra página
"Roberto pediu-me uma bicicleta, o meu salário não dá, mas ele merece porque é estudioso e esforçado.
Fiz um empréstimo que espero pagar com horas extraordinárias".
José Roberto mordeu os lábios.
Lembrava-se da sua intolerância, das brigas feitas para ganhar a sonhada bicicleta.
Se todos os amigos ricos tinham uma, porque é que ele também não poderia ter a sua?
"É duro para um pai castigar um filho e bem sei que ele poderá odiar-me por isso;
entretanto, devo educá-lo para seu próprio bem."
"Foi assim que aprendi a ser um homem honrado e é o único modo que sei de ensiná-lo".
José Roberto fechou os olhos e viu toda a cena quando por causa de uma bebedeira, tinha ido para a cadeia e naquela noite, se o pai não tivesse aparecido para impedi-lo de ir ao baile com os amigos...
Lembrava-se apenas do automóvel retorcido e manchado de sangue que tinha batido contra uma árvore...
Parecia ouvir sinos, o choro da cidade inteira enquanto quatro caixões seguiam lugubremente para o cemitério.
As páginas sucediam-se com ora curtas, ora longas anotações, cheias das respostas que revelam o quanto, em silêncio e amargura, o pai o tinha amado.
O "velho" escrevia de madrugada.
Momento de solidão, num grito de silêncio, porque era assim que ele era, ninguém o tinha ensinado a chorar e a dividir as dores, o mundo esperava que fosse forte
para que o não julgassem nem fraco e nem covarde.
E agora, no entanto, José Roberto tinha a prova que, debaixo daquela fachada de fortaleza havia um coração tão terno e cheio de amor.
A última página.
A do dia em que ele tinha partido: - "Meu Deus, o que fiz de errado para o meu filho odiar-me tanto?
Porque sou considerado culpado, se nada fiz, senão tentar transformá-lo num homem de bem?"
"Meu Deus, não permitas que esta injustiça me atormente para sempre.
Que um dia ele possa compreender-me e perdoar-me por não ter sabido ser
o pai que ele merecia ter."
Não havia mais anotações e as folhas em branco davam a ideia de que o pai tinha morrido naquele momento.
José Roberto fechou depressa a caderneta; o peito doía.
O coração parecia ter crescido tanto, que lutava para escapar pela boca.
Nem viu o autocarro entrar na central, levantou-se aflito e saiu quase correndo porque precisava de ar puro para respirar.
A aurora rompia no céu e mais um dia começava. "Honra teu pai para que os dias da sua velhice sejam tranquilos!" - tinha ouvido esta frase um dia e nunca tinha reflectido na profundidade que ela continha.
Na sua egocêntrica cegueira de adolescente, nunca tinha parado para pensar em verdades mais profundas.
Para ele, os pais eram descartáveis e sem valor, como as embalagens que são atiradas ao lixo.
Afinal, naqueles dias de pouca reflexão tudo era juventude, saúde, beleza, música, cor, alegria, despreocupação, vaidade.
Não era ele um semideus?
Agora, porém, o tempo tinha-o envelhecido, fatigado e também tornado pai aquele falso herói.
De repente.
No jogo da vida, ele era o pai e seus actuais contestadores.
Como não tinha pensado nisso?
Certamente por não ter tempo, pois andava muito ocupado com os negócios, a luta pela sobrevivência, a sede de passar fins-de-semana longe da grande cidade, a vontade de mergulhar no silêncio sem precisar dialogar com os filhos.
Ele nunca tivera a ideia de comprar uma cadernetinha de capa vermelha para anotar uma frase dos seus herdeiros, nunca lhe tinha passado pela cabeça escrever que tinha orgulho naqueles que continuariam o seu nome.
E logo ele, que se considerava o mais completo pai da Terra?
Uma onda de vergonha quase o prostrou por terra numa derradeira lição de humildade.
Quis gritar, levantar-se procurando agarrar o velho para sacudi-lo e abraçá-lo; encontrou apenas o vazio.
Havia uma raquítica rosa vermelha num galho no jardim de uma casa, o sol acabava de nascer.
Então, José Roberto acariciou as pétalas e lembrou-se da enorme mão do pai podando, adubando e cuidando com amor.
Porque será que nunca tinha percebido tudo aquilo antes?
Uma lágrima brotou como o orvalho, e erguendo os olhos para o céu dourado, de repente, sorriu e desabafou-se numa confissão aliviadora:
"Se Deus me mandasse escolher, eu juro que não queria ter tido outro pai que não fosses tu, meu velho!
Obrigado por tanto amor, e perdoa-me por ter sido tão cego."

NB - recebido por e-mail. Obrigado, Jorge!

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